ZAROFF, O CAÇADOR DE VIDAS
1932
IRVING PICHEL / ERNEST B. SCHOEDSACK
SINOPSE:
Um cruzeiro naufraga perto da costa de uma pequena ilha e para lá vão os únicos três sobreviventes. Lá encontram o conde Zaroff, que os acolhe e lhes oferece lugar para ficarem. Porém, o estranho e enigmático conde tem uma queda pela arte de caçar.
ELENCO:
Joel McCrea
Fay Wray
Robert Armstrong
Leslie Banks
Noble Johnson
Steve Clemente
William B. Davidson
FICHA:
Título Original: The Most Dangerous Game
País De Origem: EUA
Ano De Lançamento: 1932
Gênero: Terror / Suspense
Duração: 1h 03Min
Idioma: Inglês
COMENTÁRIO:
A selva como cenário de Zaroff, o Caçador de Vidas (1932) é o lugar onde Irving Pichel e Ernest B. Shoedsack parecem perder qualquer traço de autoria. Trata-se de um filme que aparenta ser dirigido por um produtor, já que é quase tudo apenas filmado e protagonizado, e isso não quer dizer muita coisa. Isso porque ao menos Shoedsack, ao lado Merian C. Cooper, haveria de se deixar levar outra vez pela selva em King Kong (1933), para se perder dentro das maravilhas dela dentro do filme.
Portanto não é o caso de Zaroff não ser um filme pessoal, mas o caso de que ele é um filme que sobrevive apesar de si mesmo. Em todo caso, não há para onde fugir porque Pichel e Shoedsack têm no centro de tudo algumas ideias. Uma é a do personagem (que dá a ação ao filme), e a outra é sobre ele mesmo, transporte crível – perfeitamente construído por Leslie Banks, no papel do verdadeiro protagonista, Zaroff – da imagem da ideia. Apenas isso, já parece ser suficientemente frontal, como uma ideia sobre os efeitos especiais que roubava outras tantas a respeito de King Kong e como o próprio “mais perigoso dos jogos” do título original rouba da técnica um lugar profundamente construído (um mal mostrado e ainda assim bastante climático castelo) para fazer ressoar uma visão maluca do prazer.
Zaroff nada mais é do que um homem que se preserva a um direito – de matar, e, em outras palavras, de ser virgem para poder continuar matando. Seu prazer parece vir da fuga do prazer e também da apreciação da única coisa concreta que lhe dá ainda um sentido na vida. A enorme cicatriz na sua testa está lá como mais um objeto cênico mal explorado pelos diretores, mas fundamental no local em que se encontra e na forma como Zaroff a toca com certa frequência. Objeto este que sabe ser parte da construção do personagem, para significá-lo além dali. É que o Conde Zaroff é de fato a única coisa que importa e por isso é a única forma a receber uma marca e o único funcionar como uma extensão que o filme encontra para se sustentar. É sobretudo uma vitória da caracterização sobre a ausência de personalidade do filme – e personalidade é o traço que não anula Zaroff: ele é único a não se comportar como um boneco de teatro e sua apresentação acontece no intervalo entre um corte medíocre qualquer – pois quase inconsciente de sua existência, já que se vê uma figura bem mais ameaçadora do que ele, um serviçal chamado Ivan (Noble Johnson) – e uma outra imagem.
Esta aparição na tela é digna de um esquecimento – e no entanto, o curioso é ver como Zaroff vai tomar conta dos espaços e dos buracos deixados pelos outros personagens. É por isso que a cicatriz lembra a Zaroff não só no que ele acredita (um homem não poderia fazer aquela cicatriz se tivesse a oportunidade – pelo contrário, o teria matado, pois esta cicatriz é uma vitória do caçador com mais capacidades que a caça), mas do seu trabalho de roubar todo um filme. Ele é uma figura a se dirigir ou fugir – ambos os movimentos forjados pelo seu modo de ver o mundo e o Homem.
É claro que se tem uma distorção. A diferença com relação a King Kong seria aquela em que na selva não se encontra mais bicho algum e talvez não se encontre nem sequer a selva. Ela é também de Zaroff, ou mais do do que qualquer coisa, da ideia que se tem dele, de seu conhecimento profundo sobre a geografia de sua casa, da ilha e da mata. Encontra-se, isto sim, um local onde a caça é permanente e sempre silenciada pelo filme. A selva é o espaço da descoberta da selvageria humana pensada e não pré-histórica (esta pura e simples, porque é calculada pela natureza), porque a civilidade de Zaroff foi sempre a responsável por trazê-lo para a mata. Não é à toa que aquela cicatriz está bem ali.
Tendo um personagem completamente funcional, resta a Pichel e Shoedsack construir uma espécie de maldição narrativa primitiva. Os movimentos são previsíveis desde que Bob Rainsford (Joel McCrea), famoso caçador e escritor de livros, é questionado sobre a possiblidade de inverter os papéis com a morte, ou seja, dele ser um morto em potencial – morto, mas de uma “morte matada”, como as milhares que ele já proporcionou aos animais fotografados em um de seus livros. A esta possibilidade, Pichel e Shoedsack colocam em cena todo este fazer primitivo (é primitivo também o cenário, a pureza falsa que delineia as figuras) e instauram um naufrágio – uma cena calculadamente forte – para romper um mundo até então aceitável, da camaradagem estritamente cênica (e por isso mesmo polida) e colocar no lugar então o impossível, esta prática primitiva da morte do outro como porta para o amor (coisa que certos animais praticam). No caso de Zaroff, para o sexo.
Não deixa de ser irônico que mesmo sem aquilo que se chama “direção” ou até mesmo “cena” Zaroff, o Caçador de Vidas possua uma força do aprendizado tão enraizada. É que vemos aqui alguns momentos que ensaiam um uso (já bem atrasado, diga-se – porque já conhecíamos Murnau) da câmera para explorar a profundidade dos espaços. Em se tratando de um filme tão chapado como este (e por extensão King Kong, e estes filmessem mise en scène), em que existe sem dúvida alguma imagens profundamente bidimensionais (digamos, em outras palavras, que isso vem de certa passividade da câmera ou da lente) uma cena como aquela em que a câmera realmente toca elementos do cenário – o mato da selva se chocando contra ela, na cena de perseguição – ao passear subjetiva e convulsivamente por ele, parece extremamente anômala. É curioso como Pichel e Shoedsack se perdem em certo tom quase pré-histórico da selva e esquecem justamente de observá-la e tocá-la com mais dimensões do que apenas duas.
Esta é uma estrutura que Zaroff, o personagem, vem para explicar. É que é ele quem vai receber um pouco de emoção no filme, ainda que cênica. Esta emoção está num grande close up esculpido em luz e sombra, ou, mais ainda, na ideia de Zaroff, que diz respeito ao sexo após a morte de um suposto oponente (um retorno à animalidade) humano. É na ilha de Zaroff que encontramos, tal qual a câmera que toca as folhas de uma planta, a possibilidade de andar para dentro do filme – quanto a isto, fora da técnica prmitiva (ou pobre de ideias mesmo) de Pichel e Shoedsack – reside a incisão de um filme duplo. Zaroff quer na verdade alguém que lhe ajude a conhecer o filme profundamente, para dentro dos espaços, e com isso, apresentar ali a sua ideia. Bob, Pichel e Shoedsack não são emotivos (ou seja, são perfeitos e por isso mesmo péssimos) o suficiente, pois estão bem posicionados no filme chapado que participam e constroem. Entretando, Zaroff está à frente do filme que habita, quer conhecê-lo mais profundamente, quer dar este passo, e não é por acaso que o movimento de câmera que perfura a bidimensionalidade de Pichel, Shoedsack e Bob Rainsford é executado por ele. É um passo bem à frente do que um filme tão frontal e inocente pode suportar. É num passo desse ao profundo e na fuga de uma primitiva falta de saber que reside todo o precioso código a ser desvendado.
CÓPIA DO ORIGINAL. DUAS VERSÕES: COLORIDA E PRETO & BRANCO NO MESMO DISCO. LEGENDADO.
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